1/29/2009

Sofismas e fumaças

Em relação ao meu texto comparativo sobre os tempos entre reprovação de um EIA (estudo de impacte ambiental) e aprovação de um segundo EIA, convém esclarecer algumas pessoas que parecem continuar sem estar convencidas do tratamento especial que o Freeport beneficiou. Em muitos casos, fala-se que, como já o Freeport tinha sido apresentrado duas vezes, nada existe de anormal por o Freeport ter sido aprovado à terceira vez. Este «erro» de análise - talvez devido ao senso comum lusitano defender que «à terceira é de vez» - deve-se ao desconhecimento dos pressupostos que devem presidir a uma correcta avaliação de impacte ambiental.

Por isso, talvez seja conveniente mais uns esclarecimentos. Primeiro: não houve dois chumbos. A primeira vez que o projecto foi apresentado ao Ministério do Ambiente, em 2000, aquilo que aconteceu foi uma desconformidade administrativa. Ou seja, os elementos constantes do EIA não eram suficientes para uma correcta avaliação. As autoridades ambientais nem sequer disseram que o projecto era bom ou mão; disseram sim que o EIA estava mal feito. E, por isso, mandaram-no para trás, porque nem sequer valeria a pena analisá-lo. Por isso, somente houve o chumbo de Dezembro de 2001.

Ora, esclarecido este «pormenor», vejamos então por que houve algo de estranho entre a reprovação de Dezembro de 2001 e a aprovação em Março de 2002.

Primeiro, quando um projecto sujeito a EIA é chumbado, parte-se sempre do pressuposto que um novo projecto mesmo se no mesmo local tem, necessariamente, de seguir todos os trâmites legais e processuais do anterior, mas como se esse anterior projecto nunca tivesse existido. E isso deve ser feito por uma questão de óbvia prudência reforçada. Um projecto cujo EIA é chumbado numa primeira fase significa que previsivalmente traria, caso fosse implantado, tantos problemas ambientais que não há medidas minimizadoras e/ou compensatórias que lhe pudessem valer. Para quem não anda «nisto», talvez não saiba que a generalidade dos projectos aprovados em sede de avaliação de impacte ambiental tem, em muitos casos, de «abandonar» determinadas componentes ou reformular medidas de minimização, impostas pelas autoridades ambientais. Daí que mesmo os projectos que beneficiam de uma declaração de impacte ambiental favorável, esta é «condicionado» - isto é, os promotores têm a obrigação de aplicar aquilo que o Ministério do Ambiente lhes impõe.

Donde, tudo isto significa que um «chumbo» é uma espécie de «anátema» que joga mais contra do que a favor do projecto em causa. Apenas se houver uma forte reformulação do projecto é que se torna expectável que venha a ser aprovado. Ora, no caso do Freeport, as alterações conhecidas apenas referem a retirada de um hotel e de um health club e a redução pouco significativa da área impermeabilizada do estacionamento - questões menores num outlet em zona sensível que previa uma movimentação anual de pessoas da ordem dos 500 mil.
Aliás, se aquilo que estivesse em causa para justificar a reprovação inicial fosse apenas o hotel e o health club, bem como o estacionamento - e não outras coisas mais importantes -, o Ministério do Ambiente poderia ter, em vez de chumbar o projecto em Dezembro de 2001, aprová-lo logo, ordenando essa alteração em sede de declaração de impacte ambiental. Como não o fez, significa que existiam outras razões mais ponderosas.
Mas mesmo admitindo (hipótese académica) serem esses «pormenores» que estavam em causa, todo o procedimento a partir de Janeiro de 2002 - quando o novo EIA deu entrada no Ministério do Ambiente - devia seguir os trâmites normais. Jamais será aceitável que uma autoridade administrativa aceite apenas a palavra do promotor que, depois de chumbado o seu primeiro projecto, garante que expurgou as partes que levaram ao chumbo anterior. Não se pode aceitar que o Ministério do Ambiente faça apenas uma mera reapreciação. Se aceita, faz muito mal (é incompetência, pelo menos). Aquilo que deve fazer é conferir tudo, porque estamos perante, na verdade, uma nova análise, que se espera tão rigorosa como a do projecto anterior.
Em suma, a autoridade administrativa deve olhar para o novo projecto como se nunca tivesse existido o outro, segundo a seguinte perspectiva: esta «coisa» (projecto) pode ser construido, e se sim com que condicionantes? E isto leva o seu tempo, sobretudo por, ao contrário do que se pensa, um projecto anterior ter sido chumbado.
Isso tem de ser feito porque em muitos casos, os pressupostos alteraram-se (mesmo os ambientais) e nem sequer se pode aproveitar documentos de um projecto para o outro. Aliás, mesmo projectos com declaração de impacte ambiental favorável têm um prazo de 2 anos até ao início das obras, caso contrário caduca e tem de se inciar novo processo de avaliação ambiental e com novo EIA (esta foi a razão para, por exemplo, um tribunal ter mandado suspender as obras da barragem do Baixo Sabor, contra a opinião do Ministério do Ambiente, porque a declaração de impacte ambiental tinha legalmente caducado).
Aliás, quando um projecto, anteriormente chumbado, é de novo alvo de EIA, nem sequer se pode falar em reabertura do processo; o novo EIA tem um processo autónomo, por vezes uma denominação distinta.
Por outro lado, quando um projecto é chumbado e existe intenção imediata em tentar novamente uma aprovação (o que é legístimo), o promotor tem necessariamente de, primeiro, refazer o projecto e depois refazer o EIA. Podem ser questões de pormenor, dirão. Eu penso o oposto: para um projecto que foi chumbado ter hipóteses, numa segunda versão, de ser aprovado, convém não fazer as coisas em cima do joelho, a menos que haja «garantias» de que será aprovado de qualquer jeito. Por isso, mesmo do ponto de vista técnico e de projectista, o tempo entre a data do primeiro chumbo do Freeport (6/12/2001) e o início da avaliação ambiental (18/1/2002) parece-me muito curto para se refazer toda a parte do projecto de construção e um novo EIA (estamos a falar de um novo EIA, repita-se). Com efeito, o Freeport teve apenas um mês e meio de intervalo, ainda mais com Natal e Fim de Ano à mistura, para fazer tudo isto.
Por fim, remanesce uma outra questão essencial: qual foi a razão de tanta pressa por parte do Freeport em apresentar esta segunda versão ainda a tempo da legislatura do Partido Socialista? E também qual a razão da Administração Pública o querer, a toda a força, aprová-lo num Governo de gestão? É que se o Governo socialista estava quase de saída, a Comissão de Coordenação Regional de Lisboa e Vale do Tejo - a entidade coordenadora da avaliação do EIA do Freeport - continuou a existir. E, aliás, ainda existe...

1 comentário:

Mário Santos Reis disse...

Bom texto. São importantes estes esclarecimentos que ficam para lá dos «soundbytes». Principalmente num procedimento com a complexidade da Avaliação de Impacte Ambiental.

Há aqui, AIA Freeport, no entanto, outro caso de heteredoxia. É que o procedimento de AIA tem, simplificando, duas fases: uma técnica, outra política.

Na fase técnica, uma comissão técnica de técnicos de serviços designados para o efeito, avalia o EIA (e a consulta pública).

Esta comissão (comissão de avaliação) emite um parecer técnico. Este parecer técnico é remetido então à Tutela pela autoridade de AIA (entidade que preside à Comissão de Avaliação) juntamente com uma proposta de Declaração de Impacte Ambiental.

E aqui fechou a componente técnica, começa a política. A Tutela emite então a DIA que pode ser no sentido proposto pelo parecer técnico ou não. O parecer técnico NÃO É VINCULATIVO. (o que se compreende mas daria outro fio de discussão).

Neste caso, concretizando, a meio, aliás no início, do processo de AIA dá-se uma reunião da Tutela com a autoridade de AIA e com os promotores!? Isto é que é de espantar. Este facto, só por si, carece de explicação. NÃO É NORMAL, não faz parte dos procedimentos (nem é muito comum, aliás). Se a reunião se dá a pedido da Câmara Municipal, se do tio do sobrinho, se do Rei das Berlengas, isso é outra questão, não despicienda mas não a mais significativa no plano político.

O que está em causa é uma machadada (não desmentida antes confirmada) no escorreito processo de formação de decisão. É o atalho político na componente técnica. Este, para mim, é, do ponto de vista do desenvolvimento do país, o facto mais importante. É que se traduz no desvirtuamento do processo, comprometendo o mecanismo de «achar» a melhor decisão.

Outro facto elucidativo, pelo que se tem lido nos jornais, é que o relatório da consulta pública foi entregue, a correr, na secretaria de estado no dia em que foi assinada a DIA, portanto já com o parecer técnico emitido.

Ora pretende a legislação de AIA que o processo seja participado e auditado pelo público. Assim, quando um EIA recebe a conformidade (i.e. o estudo tem qualidade para a comissão decidir sobre o projecto e, atenção, decidir favorável ou desfavorávelmente!) mas, dizia, quando o EIA recebe a conformidade abre-se um período de (dificultada, infelizmente) consulta pública. Os resultados da consulta, pretende a lei, são assimilados pela comissão de avaliação na construção do seu parecer e na emissão do seu teor.

Assim, a consulta pública é PARTE INTEGRANTE da componente técnica do processo de AIA! Tem que se reflectir no parecer técnico! Não é uma mera formalidade de: «aqui está o papel da consulta»!

Ora, no presente caso, o relatório da consulta pública foi isto mesmo, uma mera formalidade, tipo, «relatório da consulta pública? - CHECK!».

E foi este um AIA como os outros...

sim, pois...

Mário Reis