6/28/2004

Farpas Verdes XCI

Para a revista Ar Livre deste trimeste, o José Carlos Marques pediu-me para escrever um pequeno texto sobre água. Vou colocá-lo também aqui, pois mantém-se, infelizmente, actual. Agora, como há vários anos atrás. E desconfio que também no futuro.

Todos os anos, a cena repete-se: o Ministério do Ambiente divulga um relatório sobre a qualidade da água para consumo humano com vários meses de atraso e coloca-o na Internet. Nessa altura, fica-se a saber que cerca de meio milhão de portugueses beberam água contaminada com microorganismos, mais uma quantas dezenas de milhar com excesso de nitratos e em muitas zonas detectam-se situações anormais de água com metais pesados e outras substâncias perigosas. Fica-se também a saber que muitas autarquias não cumprem os programas de vigilância previstos na lei e que não avisaram as populações aquando de situações de contaminação da água.

Numa matéria tão sensível como a água que nos sai da torneira esta atitude dos responsáveis políticos apenas é compreensível pela ausência de reacção das populações. Num país onde o grau de exigência em relação à qualidade dos serviços é mínimo, os incumprimentos generalizados das entidades gestoras e o laxismo do Ministério do Ambiente perante tantos atropelos tenderá a manter-se sine die. Sobretudo nas regiões do interior do país onde a capacidade reivindicativa é menor – não apenas pelo reduzido peso demográfico, mas também do peso político. De qualquer modo, é confrangedor verificar que num país da União Europeia que beneficiou de tantos fundos comunitários para solucionar os problemas do saneamento básico tenhamos ainda casos de contaminação bacteriológica quase terceiro-mundistas.

Esta questão da qualidade da água mostra também o completo fracasso dos projectos de despoluição do país. Os grandes investimentos que se realizaram nas duas últimas décadas no sector do abastecimento de água – quase sempre dirigidas para os aglomerados populacionais do litoral – foram quase sempre para substituir captações contaminadas.

Em vez de investir, de forma criteriosa e estratégica, em projectos de despoluição e protecção de origens de água, optou-se pela construção de grandes e extensos adutores que transportam água de grandes distâncias e com custos enormes. Basta verificar o que tem vindo a acontecer com a albufeira de Castelo de Bode que é, actualmente, a origem de água de mais de 3 milhões de habitantes, que vivem, em muitos casos, a mais de uma centena de quilómetros de distância. Mesmo assim, esta grande reserva de água não tem tido a protecção que se exigia. Embora o rio Zêzere não apresente ainda níveis de contaminação preocupantes, já a tendência de degradação dos últimos anos começa a ser algo alarmante.

Como parece óbvio para todos, a precariedade na qualidade da água das nossas torneiras não é mais do que o reflexo da ausência de tratamento de esgotos urbanos e industriais, incluindo também as pecuárias, que drenam e poluem rios, albufeiras e águas subterrâneas. Actualmente, apenas metade da população portuguesa usufrui de tratamento dos esgotos urbanos, embora a taxa de redução de poluentes orgânicos, medidos em carência bioquímica de oxigénio, seja ainda menor. De acordo com os dados do Plano Nacional da Água é inferior a 30 por cento.

Em todo o país, pouco mais de quatro dezenas de municípios tinham, no final de do ano 2000, mais de 90 por cento dos seus esgotos tratados; muito menos do que aqueles que nem sequer chegavam aos 20 por cento. Ressalve-se, contudo, que a cobertura de infra-estruturas de saneamento de esgotos não signifique necessariamente que estes sejam bem tratados.

Em muitas regiões, a fraca aposta no saneamento básico advém das políticas urbanas. Sobretudo na região norte e centro – em que os aglomerados urbanos são extremamente dispersos –, os custos da implantação de redes de drenagem de esgotos atingem valores elevados. E, por isso, foram sendo consecutivamente adiados, sendo que a maioria das residências optaram por fossas sépticas que facilmente são focos de contaminação das águas subterrâneas. E se uma fossa, por vezes, incomoda muita gente, centenas de milhares de fossas incomodam muitíssimo mais. Ora, como obviamente uma estação de tratamento apenas é útil se lhe chegarem os esgotos, ainda há um trabalho enorme a fazer em muitas regiões.

Aliás, em muitas zonas do interior, os investimentos iniciais em saneamento básico tiveram o condão de agravar os problemas de poluição dos rios. Como se fizeram apenas as redes de drenagem, os esgotos foram canalizados para os rios de forma concentrada em poucos locais. Não é, assim, de estranhar que, num recente relatório da Agência Europeia do Ambiente, Portugal surja como o país com pior qualidade das águas interiores.

De qualquer modo, em Portugal ainda 30 por cento da população não está colectada a sistemas de drenagem, havendo mesmo cerca de uma centena de municípios em que esse índice ultrapassa os 50 por cento. E tudo isto depois de dois quadros comunitários de apoio...

Se isto já mostra um cenário negro, se se analisar a forma como os esgotos são tratados, a situação ainda piora mais. Ainda recentemente foi noticiado que a Inspecção-Geral do Ambiente detectou irregularidades graves em 93% das estações de tratamento de águas residuais (ETAR) que foram alvo de fiscalizações em 2000 e 2001. Em mais de metade delas (57%), os problemas advinham do seu sobredimensionamento – ou seja, fez-se apenas a vontade aos construtores civis – do deficiente controlo da qualidade das águas residuais tratadas descarregadas e da fragilidade organizativa dos sistemas. No caso dos esgotos industriais, o desconhecimento é maior, mas basta ver o estado de alguns dos nossos rios – Ave, Lis, Tejo, Douro, etc. – para ser evidente que a situação não se alterou nos últimos anos, continuando impunes a esmagadora maioria das indústrias poluentes do país.

Enquanto Portugal considerar que a qualidade da água não é uma prioridade estratégica, enquanto os portugueses não pressionarem as autoridades para lhes devolverem os rios onde antes se tomava banho em segurança, enquanto os investimentos não forem canalizados para projectos estruturantes, a situação só pode piorar. E continuaremos, como diria o velho Chefe Índio, a cuspir na água que bebemos. Nem os animais fazem isso.



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