3/10/2005

Derivações ambientais XI

Numa pesquisa pelos blogues, a pretexto de uma série de memórias sobre bibliotecas «promovida» pelo Abrupto, dei com um post no blog de Desidério Murcho. Eis um caso em que o pedantismo sai disparado pelo monitor fora e nos obriga a ir à casa de banho cheio de náuseas.

A prosa do dito filósofo é do seguinte calibre (negritos da minha responsabilidade):

«Os livros são apenas papéis pintados com tinta. Daí que, ao contrário de um leitor do Abrupto (MJA), que declara "Nunca consegui deitar um livro fora: acho um crime", eu me farte de deitar livros fora. Quase todos os meses mando livros para o lixo. E só posso pensar que alguém que não deita livros fora é porque não lê muitos livros; pois a maior parte dos livros que se publicam são uma choldra. (Isso devia ser evidente dado que até eu já publiquei livros.) E por que razão haveria de ser de outro modo? A maior parte dos quadros que se pintam são uma porcaria, e a maior parte da música e da filosofia que se faz é uma miséria. Na verdade, a maior parte de tudo (incluindo editoriais como este e blogs) é uma porcaria. Daí que seja necessário com os livros, como com tudo na vida, essa capacidadezinha que dá um bocado de trabalho: discernimento.

O amor aos livros é inversamente proporcional ao desenvolvimento cultural das sociedades. Na sociedade portuguesa o livro é encarado como um adereço sagrado da vida culta e o problema é que na vida verdadeiramente culta não pode haver adereços sagrados: há inovação, espírito crítico e independência mental; quando as ideias andam de gravata, em livros bolorentos, são fraquinhas e tolas. Daí que nas sociedades verdadeiramente cultas, onde se produziram e continuam a produzir algumas das ideias mais importantes da humanidade, não se encontre esta atitude de sacralização do livro. Por isso escrevi no editorial "O Livro Sagrado" que precisamos é de dessacralizar o livro, e não de cantar encómios pacóvios ao livro. Como ninguém leu esse editorial, aqui estou a repetir a mesma coisa. Claro que ninguém lê à mesma, mas sempre alivia o espírito.»

Eu, que nunca deitei um livro para o lixo, porque a) sei seleccionar aquilo que compro; b) tenho respeito por aquilo que me oferecem; c) mesmo os maus livros (apreciação subjectiva) devem ser preservados para funcionarem como referência daquilo que não se deve escrever; d) os livros sempre são um marco da história para compreender o passado e perspectivar o futuro - eu, como dizia, que nunca deitei um livro fora, fiquei de repente com ganas de deitar um qualquer dos livros de Desidério Murcho para o caixote do meu mais repugnante vómito. Felizmente, não tinha nenhum. Nem hei-de ter!

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