2/11/2005

Farpas Verdes CLXIV

Acompanhei, quando ainda estava no semanário Expresso, o processo do Freeport Alcochete. A minha notícia foi mesmo a primeira a falar no «caldinho» que se estava a preparar, embora saiba que teve o condão de refrear a celeridade do processo, a ponto de ter sido «chumbado» o primeiro estudo de impacte ambiental em Dezembro de 2001. Entretanto, sabemos que houve uma alteração de última hora nos limites da ZPE e a aprovação do projecto em vésperas de eleições e com um governo socialista de gestão. Uma coisa parece-me evidente: havia já quem andava a fazer «lobby» para aquilo avançar e quem tentasse rumar contra a maré, protegendo aquela área. Venceram os que queriam construir, como quase sempre ocorre.

Ao contrário daquilo que agora José Sócrates e o PS vieram dizer, não é indiferente a alteração dos limites da ZPE e a aprovação do projecto. À luz do direito nacional, surgem-me algumas dúvidas, porquanto claramente essa alteração tinha como objectivo final enquadrar um projecto específico, o que a lei não permite. No entanto, essencialmente o objectivo era evitar conflitos com a Comissão Europeia.

Houve, para mim, claramente, um benefício concedido à empresa britânica - tal como houvera pouco tempo antes para a construção do centro de estágios do Sporting (também escrevi sobre isso). Se este processo envolveu ou não contrapartidas financeiras a partidos ou a políticos, é matéria para investigação policial e judiciária. Ainda bem que está a ser feita e somente se lamenta que não se investigue mais. Mas que este é um processo que cheira a esturro por todos os poros, ai isso cheira... que tresanda.

Por outro lado, o argumento de José Sócrates de que delegara poderes no secretário de Estado do Ambiente é uma falácia. Alguém acredita que o então ministro do Ambiente não falou sequer com o secretário de Estado sobre estas matérias? E não se achará estranho que depois de um «chumbo» do projecto em Dezembro de 2001 - quando a autarquia era da CDU - tenha sido aprovado somente quatro meses depois, em em gestão autárquica socialista? E um ministro não é, pelo menos politicamente, responsável pelos actos dos seus secretários de Estado? Se assim não for, então teremos todos os ministros a delegarem poderes aos secretários de Estados e servirão apenas como papel decorativo para cortar fitas. Por isso, Sócrates - para o bem e para o mal - não pode dizer que é completamente alheio ao processo de aprovação do Freeport.

Em baixo, coloco a notícia que então publiquei no Expresso, na sua edição de 1 de Setembro de 2001. O projecto será aprovado quando o Governo socialista estava de malas feitas (diga-se que esta «brincadeira» é normal em fases de transição: PSD em 1995 também fizera isso em três empreendimentos no Algarve...).

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Centro comercial invade Tejo

O ministro do Ambiente, José Sócrates, terá parecer vinculativo na aprovação do projecto

UMA empresa britânica - a Freeport Leisure - pretende instalar um complexo lúdico-comercial em Alcochete, em plena Zona de Protecção Especial (ZPE) de Aves do estuário do Tejo e da Rede Natura, numa área de 37 hectares que coincide, em parte, com a antiga fábrica de pneus da Firestone.

Para uma área de quase 13 hectares está projectada a construção de um centro comercial em modelo «outlet» - espaço aberto -, com 28 salas de cinema, um «health club», uma zona de restaurantes e bares, uma discoteca, um centro de «bowling» e um hotel com 120 camas e centro de congressos.

Contudo, associado ao centro lúdico-comercial, será construído também um parque de estacionamento para cerca de três mil veículos, englobando perto de 11,5 hectares. Além disso, noutra zona adjacente, bastante próxima dos sapais, a Freeport Leisure pretende implantar, em 13 hectares, «um projecto de renaturalização, visando uma qualificação do ponto de vista ambiental».

Estas duas parcelas estão totalmente integradas na ZPE e, segundo a Reserva Natural do Estuário do Tejo (RNET) - a entidade gestora daquela área - estão ainda abrangidas pelo regime da Reserva Ecológica Nacional (REN), que proíbe a ocupação e movimentação de solos. O representante da empresa britânica em Portugal, João Cabral, diz que «o projecto de renaturalização é uma forma de compensar a ocupação da área do estacionamento».

Divergências ambientais

Nessa altura, o então vice-presidente do ICN, José Manuel Marques, referia que «a implementação do projecto (...) não constitui uma incompatibilidade face aos objectivos da conservação da natureza (e da avifauna em particular) e ao quadro normativo e legal que sobre a zona incide». E considerava que seria suficiente a renaturalização da área do antigo pomar para eliminar os efeitos negativos.

No entanto, o plano de gestão, aprovado ainda em 1999, refere que na área da ZPE se deve «manter o carácter rural do espaço» e que «as densidades de povoamento urbano (deverão ser) idênticas ou inferiores às actuais». Isto significa que, quanto muito, se poderia substituir o volume de ocupação da fábrica de pneus por uma área idêntica de uso comercial, mas sem intensificar a presença humana.

Apesar dessa posição inicial do ICN, Antunes Dias, director da RNET,diz que «um parecer daquele género não tem qualquer validade, porque nada pode contrariar a legislação específica de protecção da zona».

O presidente do ICN, Carlos Guerra, afirma que o seu então vice-presidente - que, no ano passado, foi exonerado por José Sócrates por causa do empreendimento do Abano, no Parque Natural de Sintra-Cascais - terá emitido um «parecer voluntarioso». «Não será tido em conta na avaliação do projecto», garante.

Antunes Dias relembra também que a autarquia de Alcochete não pode aprovar nada para aquela zona. Com efeito, a Resolução de Conselho de Ministros de 17 de Julho de 1997 - que aprovou o plano director municipal de Alcochete - excluiu a possibilidade de ocupação da área da antiga fábrica de pneus com actividades de usos urbanos.

Sporting cria precedente

De qualquer modo, sob este projecto paira o precedente criado pela aprovação do centro de estágios do Sporting, em Alcochete, que também se encontra na ZPE do estuário do Tejo. Carlos Guerra defende, contudo, que «são processos distintos, porque a ocupação é diferente».

Este tipo de precedentes tem sido criticado por vários quadrantes. Ainda há poucos meses, o presidente da autarquia da Figueira da Foz, Pedro Santana Lopes, afirmava ao EXPRESSO «não compreender que se tivesse aprovado o projecto do Sporting e o Ministério do Ambiente tenha chumbado o empreendimento turístico da Lagoa da Vela», na zona de Buarcos, também localizado na Rede Natura.

PEDRO ALMEIDA VIEIRA, EXPRESSO (1/9/2001)

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