9/11/2006

OK, pronto, estou a polemicar (take II)

Para mim é sempre um acto ingrato reagir ao escrito de alguém que assegura não desejar entrar em polémica comigo. Sobretudo se, por outras razões que não vêm ao caso, arrisco a que essa pessoa pense que existem outros motivos sombrios. Longe de ser este o caso. Mas como jamais tive receio de polemizar, vejo-me obrigado a reagir ao post do João Morgado Fernandes (JMF) no French Kissin'. Até porque tenho a certeza absoluta que, neste caso, a polémica será útil e ele a aceitará de bom grado (não sendo, contudo, necessário responder). Útil para ele (assim espero) e útil para mim, porque poderia dar-se o caso de eu até estar a fazer juízos preconceituosos. Por isso, o editorial do DN do passado dia 7 foi-me útil porque me «obrigou» a proceder a análises ainda mais rigorosas.

Diz JMF que «obviamente, há mil e uma maneiras de fazer contas e todas dão certo». Tem razão. Isso é verdade, se não se errar nos números. E se se fizerem contas adequadas. Com efeito, JMF sustenta a alegada eficácia do Governo apenas com duas contas: compara este ano (que ainda não terminou) com o ano passado e com a média dos cinco anos. Comparar um ano com o anterior é uma aberração estatística em matéria florestal. Comparar com a média dos últimos cinco anos é outra, tanto mais porque qualquer Governo se arricava - perante o desastre do último quinquénio - a ter um valor muito abaixo da média se chovesse durante o Verão, como aconteceu em três períodos distintos (Junho, Julho e Agosto; e parece que vem aí mais nos próximos dias...). O problema é que a média já é um desastre. E metade da média continua a ser um desastre. Se alguém perguntar a um especialista independente quantos hectares «suporta» a nossa floresta para ser rentável, ele diria 40 mil ou 50 mil. O Porter, já uma década, falou em 40 mil - todos já se esqueceram.

Ora, mas o que fiz eu? Uma conta, duas contas? Não, fiz muitas. E nenhuma simplista. E contas «a seu gosto»? Não, pelo contrário, o Governo é que infeizmente se desunha a fazê-las. Lembrarm-se dos mais de 500 fogos por dia na primeira quinzena de Agosto? pois eliam agora o relatório oficial da DGRF: fizeram uma correcção dos números, o que significa que não tivemos 500 fogos coisíssima nenhuma.

Mas eu possso fazer mais contas; usar todos os dados e mais alguns. E todas levarão ao contrário do que JMF defende. E eu até «renegaria» a todas elas se houvesse alguém que me apresentasse uma conta que não fosse enviesada e que demonstrasse de forma inequívoca e sem «malabarismos» estatísticos que a eficácia é boa. Se eu «tenho os livros», como diz JMF, não os escondo; pelo contrário, publico-os...

Mas, mesmo assim, «obrigo-me» a mais um esforço para mostrar a «eficácia» do Governo. E até me ponho a fazer o papel de advogado do diabo. Assim, agora não quero saber dos 900 mil hectares ardidos nos últimos anos que colocaram em «pousio» muitas zonas críticas. Nem quero saber da chuva deste Verão que está a ser um dos mais húmidos das duas últimas décadas. Desconte-se tudo isto: imaginemos que teve sempre um calor de rachar e não caiu uma pinga sequer de água. E que Portugal tem agora 3,3 milhões de hectares que poderiam ter ardido este ano (valores do Inventário Florestal de 1995).

Pois bem, mesmo assim, com 61 mil hectares (e estou a ser bondoso, mais uma vez, porque estimo que já se vá nos 80 mil hectares), objectivamente continuamos a ter uma eficácia muito medíocre no combate aos incêndios. E por que digo isto? Porque se quisermos comparar, por exemplo, com Espanha - cuja imprensa não está propriamente a elogiar o Governo em relação aos incêndios deste Verão -, objectivamente verifica-se que a situação portuguesa é, apesar de tudo, muito pior.

Com efeito, até 3 de Setembro, em Espanha arderam cerca de 136 mil hectares, enquanto em Portugal arderam 61 mil hectares (até 31 de Agosto). Ora, como a Espanha é cerca de 5,6 vezes o tamanho de Portugal, significa que a área ardida no nosso país (61 mil) equivaleria a quase 342 mil hectares em território espanhol. Alguém imagina um editorial do El País, por exemplo, a elogiar a eficácia do combate em Espanha se lhes tivessem ardido 342 mil hectares(mais do dobro do pior ano deles da última década)? Na verdade, se qualquer jornal em Portugal fosse tão crítico como os jornais espanhóis em relação aos resultados deste ano em Espanha, já deveria ter começado a zurzir no nosso Governo há muito tempo (136 mil hectares em Espanha representam 24 mil hectares em Portugal).

Mas para que não se venha com a questão de que uma coisa é o território, outra a área florestal, apresentemos a dita «coisa» noutra perspectiva. Se consideramos que a área florestal (floresta e matos) em Portugal é de 3,3 milhões de hectares (estou a ser bondoso, mais uma vez, usando a área total do último Inventário Florestal, de 1995 - e portanto «meto» as áreas ardidas nos últimos três anos e que agora não podem arder), então 61 mil hectares queimados representam uma afectação de 1,8% do território português. Em Espanha (vd. aqui), eles estão este ano com uma afectação de 0,5% do seu território - grosso modo, uma taxa semelhante à deflorestação da Amazónia.

Ou seja, mesmo com a «eficácia» do Governo português, ardeu três vezes mais do que em Espanha, onde a ineficácia foi particularmente evidente na Galiza. Aliás, neste aspecto, como se pode ficar satisfeito com a «eficácia» em Portugal se nos dois distritos minhotos (Viana do Castelo e Braga) ardeu 5% do seu território, enquanto os fogos da Galiza causaram uma destruição de 3% da área da Comunidade Autonómica?

Enfim, estranho país o nosso em matéria de incêndios: algo que na Espanha é mau, em Portugal transforma-se em bom, mesmo se esse bom português é três vezes pior do que o mau espanhol.

Mas há mais análises a fazer. Este ano, como se sabe, está a ser terrível em Espanha em termos de incêndios de grandes dimensões (superiores a 500 hectares). Por norma, eles tiveram uma média de 22 por ano na última década e este ano já vão em 52. Portanto, a situação em Espanha não pode ser considerada nada boa. Porém, em Portugal houve já 17, o que em termos proporcionais (de território) seria o mesmo que Espanha ter tido 95 incêndios com mais de 500 hectares. Ora, o que diria, por exemplo, um editorial do El País se este ano a Espanha tivesse 95 incêndios daquela dimensão?

Quando também critico o Governo socialista - e apelo à memória dos jornalistas - é porque, em 1999, o então Governo liderado pelo António Guterres (e onde estavam muitos dos actuais governantes) aprovou o Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta Portuguesa. E esse plano tinha metas muito concretas - por exemplo, no período 2003-2008 deveria arder cerca de 40 mil hectares em média por ano -, mas que foram abandonadas quer pelo Governo PSD/PP quer pelo novo do PS. E em seu lugar o Governo actual colocou agora uma meta de 100 mil hectares. Ou seja, há meia dúzia de anos, um Governo socialista consideraria 61 mil hectares mau, agora já considera bom.

P.S. E eu estou aqui a referir que ardeu 61 mil hectares, mas o valor actual deverá atingir os 80 mil, pelas razões que já expliquei em anteriores posts.

Nota: Em abono da verdade, o meu post «Um exercício de memória para avaliar António Costa» foi uma «provocação» para fazer de contraponto aos exagerados elogios ao ministro da Administração Interna. No meu livro não fiz qualquer análise deste tipo, porque não faz qualquer sentido. Não há nenhum Governo que se destaque pela positiva, todos contribuíram para o desastre que se agudizou nos últimos anos. O único Governo que me merecerá elogios será aquele que retirar, em definitivo, o combate aos incêndios florestais aos bombeiros voluntários e partir para uma profissionalização (e responsabilização) deste sector. Porque perante o actual «sistema», um ministro da Administração Interna estará sempre dependente da sorte ou do azar. António Costa é talvez o único ministro que terá compreendido isso, pelo sinais que tem mostrado. Mas de boas intenções está a nossa floresta num constante inferno.

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