2/07/2004

Farpas Verdes XXI

No meu primeiro trabalho para a revista Grande Reportagem, em 1998, abordei o estranho esquema de uma empresa imobiliária da zona de Benavente que, não lhe tendo sido autorizada a divisão de lotes de uma extena propriedade, conseguiu todavia concencer o notário local a fazer as escrituras. A dita empresa tinha deixado entretanto passar o prazo de dois anos , previstos na lei, para que se pudesse suscitar a nulidade e começou então a comercializar os lotes (as famosas "quintinhas") sob a aprovação da autarquia de Benavente. Por um daquelas "coincidências", o advogado da empresa, que era irmão de um então ministro do Governo de Cavaco Silva. tinha sido uma dos "arquitectos" dessa lei...

Ninguém foi chateado, ninguém foi investigado e as vivendas foram sendo construídas no empreendimento chamado Mata do Duque. Corrijo-me: eu fui investigado! Levei um processo instaurado pelo presidente da câmara de Benavante por denunciar esta e outra situação (no segundo caso, no Expresso), malgrado ter-lhe saído o tiro pela culatra, pois no despacho de arquivamento do Ministério Público, a magristrada acabou por lhe tecer duras críticas à sua actuação. Deve ter-se, contudo, ficado a rir: não teve que pagar as custas do Tribunal (os autarcas estão isentos) e amealhou uma boa maquia de sisa pela vendas dos terrenos (sobre outros benefícios não apurei mais nada, pois não me quero substituir à Justiça).

Esta história surge-me agora ao ler hoje no Diário de Notícias, o caso de 336 escrituras de venda de "quintinhas", feitas em apenas um dia no cartório da Praia da Vitória, nos Açores. Acontece que esses lotes, que são ilegais - fora do meio urbano não pode haver loteamentos, excepção feita se estiverem "camufladas" pelo turismo - situam-se não nos Açores, mas sim em Palmela, Sesimbra e Seixal. Por sorte, as autarquias - que malgrado serem das que mais autorizam construção, merecem neste caso rasgados elogios - repararam na marosca e vão agora solicitar a nulidade destas vendas.

Mas pergunto-me: quais serão as razões para que o notário de um cartório de um concelho açoreano tenha aceite fazer tantas escrituras em tão curto espaço de tempo? Mais ainda: qual o motivo pelo qual uma escritura que diz respeito a um concelho seja feita num outro concelho tão afastado? E ainda mais: qual a penalidade que pode ser exercida para quem, com dolo, sabe que está a cometer uma ilegalidade e tanto assim é que opta por ir até a um local recôndito para tentar passar desapercebido? E ainda mais: haverá investigação do Ministério Público sobre este assunto? Haverá responsáveis penalizados? E quantas mais situações terão passado incólumes e impunes por este país fora?

São histórias destas, com os finais que todos sabemos, que por vezes me fazem ter vergonha do Portugal de hoje...

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