Incêndios e RTP - dissecar a deliberação da ERC
A polémica deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC) sobre as denúncias de Eduardo Cintra Torres (ECT) relativamente à influência directa do gabinete do Primeiro-Ministro na cobertura informativa da RTP aos incêndios florestais já fiz correr muita tinta, tanto na imprensa como na blogoesfera. Não me apetece agora tecer muitas considerações sobre as recomendações que a ERC faz – porque são infelizes e sobretudo por terem fugido à questão essencial: a Informação da RTP foi, neste sector concreto, influenciada por ordens governamentais? E a uma outra suplementar: a Informação da RTP é profissionalmente competente, reflectindo os seus objectivos de serviço público? Atenção que uma resposta negativa à primeira questão, não significaria que a segunda resposta fosse imediatamente positiva. Ou seja, poderíamos ter uma Informação independente, mas incompetente.
Ora, paradoxalmente, a tarefa da ERC à primeira questão era extremamente fácil, porque se sabia, à partida (e como se confirmou), que Eduardo Cintra Torres jamais divulgaria a sua fonte (devo acrescentar alegada, por mais que pense que ele não está a mentir). A menos que, no Governo ou na RTP, houvesse uma (improvável) confissão. Portanto, a ERC deveria ter encerrado essa questão com um simples «não se provou qualquer interferência governamental». Ponto final e os tribunais que resolvessem o resto (como parece vir a acontecer).
Mas a ERC quis ir mais longe. E descarrilou-se, porque pretendeu «provar» que a cobertura noticiosa da RTP aos incêndios foi praticamente semelhante aos dos outros canais, fazendo uma análise comparativa (apresentada em anexo à deliberação e que ocupa mais de 90 páginas), mas cuja metodologia constitui um verdadeiro absurdo. E sobretudo ignorância. Por vários motivos.
Primeiro, não faz qualquer sentido simplesmente comparar apenas os números de notícias, destaques e alinhamentos (ainda mais sem dissecar conteúdos e abordagens) entre órgãos de comunicação social. Pode-se/deve-se fazer isso, mas seria fundamental também comparar com as coberturas dos anos anteriores, ponderando também os factores conjunturais (arder mais ou menos; e a localização dos incêndios). Ou seja, mais importante do que saber se a RTP fez mais ou menos cobertura do que a SIC ou a TVI, teria sido verificar se, proporcionalmente, houve diferenças fundamentais (editoriais, nomeadamente) entre a Informação da RTP e as suas concorrentes neste ano e a Informação da RTP e as suas concorrentes em anos anteriores. De modo diferente estará, na minha opinião, o artigo de ECT que suscitou a polémica: era um artigo de jornal e pegou no exemplo de um dia em que, saiu aos olhos de toda a gente, a RTP de forma escandalosa praticamente ignorou os incêndios - assunto que objectivamente nesse dia era o facto mais marcante do quotidiano nacional.
Em todo o caso, as longuíssimas análises feitas pela ERC parecem, aliás, uma tentativa de esconder as diferenças brutais na cobertura entre a RTP e as suas concorrentes. Aquilo é um amontoado de números e gráficos que somente com um olhar clínico nos apercebemos de algumas diferenças que, na verdade, existiram entre a RTP e as outras televisões, embora não admitidas de uma forma conclusiva pela ERC. Por outro lado, a decisão metodológica da ERC em comparar todas as notícias de Maio a Setembro, as de Agosto e as do período 7 a 13 de Agosto é absurda. Por duas razões. Primeiro, neste ano, embora o tema incêndios tenha estado muito presente na comunicação social, houve uma quantidade significativa de notícias em que o fogo destruidor era o protagonista (por exemplo, foram inumeráveis as reportagens sobre as brigadas da GNR, sobre sapadores, sobre prevenção, etc – temas que têm todo o cabimento serem feitas pelo teor pedagógico, mas que não deveriam ser usadas como dados estatísticos para avaliar a cobertura aos incêndios propriamente ditos). Segundo, este ano tivemos apenas um período crítico de incêndios (primeira quinzena de Agosto; aliás, que serviu de base às denúncias e análises de ECT), em que ardeu cerca de 2/3 da área deste ano. Quanto muito, para além deste período da primeira quinzena, poder-se-ia incluir a abordagem que se fez ao incêndio que matou cinco bombeiros na Guarda em 9 de Julho (e aqui, recordo-me bem, a RTP foi a única televisão que não fez este acontecimento como tema de abertura do seu noticiário).
Por isso, não se compreende que a ERC não tenha escolhido a primeira quinzena de Agosto para uma das suas análises, preferindo um período mais curto que nem sequer coincide, em toda a sua magnitude, com os dias em que oficialmente se registaram os picos de incêndios.
E foi pena também porque assim se poderia confirmar uma percepção que sempre tive ainda no Verão: a maior diferença na cobertura da Informação da RTP nem foi em relação às concorrentes (embora no período 7-13 de Agosto, a diferença foi, de acordo com dados apresentados no relatório da ERC, de menos uma hora na cobertura de incêndios em comparação com as concorrentes, além de menor tempo das peças e menor destaque no alinhamento), mas sim entre a que era feita na RTP ao fim-de-semana e aos dias da semana. Ou seja, teria sido muito, mas mesmo muito importante, que a ERC tivesse confrontado a forma como era feita a cobertura dos incêndios da RTP em função da pessoa que estava a coordenar. E se se confirmassem as diferenças abissais (e eu acho que existiram) entre a coordenação ao fim-de-semana, então ter-se-ia de questionar a Direcção de Informação sobre os motivos (objectivos ou inconfessáveis) para essas estranhas e comprometedoras diferenças.